Na Rota da Regueifa Doce –Talhar o Fastio

Estamos em 1896, final do século XIX, mais precisamente no dia 4 de junho. As gentes da Vila da Feira acompanham a Procissão do Corpo de Deus e, como manda a tradição, a imagem de roca de São Cristóvão percorre ruas e travessas, com paragem obrigatória nos lugares mais emblemáticos da terra.

No claustro do Convento dos Lóios, o povo rodeia a imagem imponente do santo, com mais de dois metros e meio de altura, que ostenta oferendas de mães angustiadas com o fastio dos filhos. São regueifas doces, presas à cintura de São Cristóvão, que hão de devolver o apetite aos catraios debilitados.

Pela vila diz-se que a crença é remédio santo. Basta embeber um pedaço de regueifa em vinho tinto e passá-lo depois pelas mãos do santo, antes de ser ingerido pelos pequenos enfermos e progenitoras devotas. Promessa cumprida!

A história associada à Procissão Corpo de Deus está registada em atas de sessões camarárias da época e em publicações de historiadores locais, sem esquecer as fontes orais da terra, que foram transmitindo memórias dos seus antepassados de geração em geração.  

A regueifa doce, tal como a regueifa branca ou azeda, é referenciada como oferenda, assente numa crença intimamente ligada ao culto a São Cristóvão e à Festa do Corpo de Deus, acontecimento anual de grande importância para as gentes da Vila da Feira e de todo o país.

Uma vez por ano, a imagem de São Cristóvão deixava a Igreja da Misericórdia e saía à rua para se juntar ao povo e incorporar a Procissão do Corpo de Deus, com a imponência que ainda hoje mantém, tal como se mantêm as mãos enegrecidas do santo, tingidas pelo vinho tinto que outrora embebera pedaços de regueifa, abençoados com um toque singelo.  

O homem que transportava e manipulava a imagem de roca do santo era nomeado em sessão camarária, e a tarefa exigia arte e engenho. Falamos de uma estrutura de madeira articulada, com mais de dois metros e meio de altura, que não deixava ninguém indiferente à sua passagem. Uma tendência da estatuária religiosa, característica do período barroco espanhol, que poderá ser apreciada e venerada na Igreja da Misericórdia.

O livro “Quatro Séculos de História – Vila da Feira: a Praça Velha”, de Roberto Vaz de Oliveira, reconhecido historiador feirense, regista e perpetua aspetos relevantes desta e de outras tradições locais, que vale a pena conhecer e explorar.

A fotografia que deu origem a esta narrativa – captada há 125 anos – pertence ao arquivo pessoal do historiador feirense Roberto Carlos Reis, que connosco partilhou outras imagens do mesmo acontecimento, com as marcas naturais que o tempo deixou, mas de uma beleza e intensidade admiráveis.


Outras imagens de arquivo: