Entrevista a emmy Curl


Catarina Miranda, mais conhecida por emmy Curl, recebeu-nos na sua casa a escassos 20 dias da sua chegada ali. Fomos para falar da sua passagem, a 8 de janeiro, por Santa Maria da Feira, mas a artista falou-nos de muito mais. Num jardim muito ao estilo de “Pastoral”, o seu mais recente álbum, a artista transmontana abordou as preocupações com o planeta, com a sociedade atual e falou daquilo que a move.

 

Como é que uma jovem de Vila Real começa no mundo da música e de uma forma pouco habitual?

Emmy Curl – Foi muito por causa da Internet. Sem a internet não teria tido acesso a um mercado tão diferente, tão à minha escolha, feito à minha medida. Ainda não existia até então o “do it yourself”. A internet deu a oportunidade aos artistas de criarem de o seu próprio emprego, de inventar a sua própria forma de estar e trabalhar, o seu público. Comecei no MySpace onde lancei os temas que fui gravando. Os meus pais também eram músicos e, por isso, tínhamos um estúdio de gravação e eu, basicamente, passava lá a vida. Comecei a ter muitas visualizações e a fazer concertos em vários pontos do país. As ferramentas online possibilitaram a colaboração entre músicos e a sua integração.

A partir daí fui crescendo lentamente à medida que fui fazendo coisas. Sempre quis assim. Se calhar, no início, quando era miúda, tinha sonhos de ser bem-sucedida musicalmente a nível global. Os meus ídolos eram quase todos americanos e com sucesso mundial, e eu achava que podia ser igual, mas estamos em Portugal e as coisas são diferentes. Por mais que tenhas talento, o mercado é pequeno. Teria de ter vivido ou nascido noutro país. No entanto, quando visitei a América, em 2014, senti um alívio enorme de viver em Portugal. Pensei: ainda bem que isto é devagarinho e está-se tão bem aqui! É tão bonito o nosso país, que eu não me importo de ir crescendo aos bocadinhos e ir partilhando, a cada ano, uma coisa nova.

 

Os teus pais influenciaram-te no género musical?

É sempre inspirador, mesmo que não esteja consciente. Os meus pais fazem baladas, pop rock também, no estilo dos anos 80. Inspiraram-me na escrita. A minha mãe é poetisa e as letras dela são muito bonitas. Têm sempre conteúdo. Não são letras sobre amores desafortunados. Têm sempre algum tipo de moral, de poesia, um aprofundamento das suas próprias experiências.

 

Porquê emmy Curl, com a particularidade do “e” em letra minúscula?

Quando comecei, aos quinze anos, procurei influenciar-me com as heroínas que gostava. Só este ano me dei conta de que o meu nome é inspirado em figuras fictícias. Emmy vem de Emma Watson. A atriz não é fictícia, mas a Armonie é, a heroína do Harry Potter. Foi uma personagem com a qual me identifiquei. É feminina, acredita na magia e sai das normas da sociedade. Curl veio para complementar, e diz respeito ao facto de eu desenhar sempre formas inspiradas na natureza, como Fibonacci.  Curl simboliza a espiral. O “e” pequeno é só uma questão visual. Gosto do “e” mais redondo.

 

Em 2007 lançaste o teu primeiro álbum “Ether”. Desde então houve uma transformação muito grande no teu estilo musical. Passaste de um estilo mais despido para um género mais pop, mais dançável e o último álbum, como dizes, é solar punk. O que motivou esta transformação?

As coisas estão sempre em transformação. Sou uma pessoa muito inconformada. Não consigo estar parada no mesmo sítio e fazer o mesmo tipo de música para sempre. Também não consigo estar sempre no mesmo lugar. Gosto muito de aprender e de ir além dos meus próprios bloqueios. Quando fazemos música tendemos a ficar presos num determinado estilo. Bloqueámo-nos e aprisionámo-nos no nosso conforto. As experiências que fui fazendo ao longo dos anos serviram para entender quais são os limites da minha criação. Até onde posso ir.

Na indústria da música, às vezes é ingrato experimentar. Quando compras uma coca-cola, sabes que vais ter aquele sabor. Se o produtor decidir experimentar outros sabores, o público vai reclamar porque esperava o sabor tradicional. Hoje em dia, um músico funciona um pouco assim. É difícil, para mim e para outros artistas que são experimentais, fazer coisas novas sem o publico estranhar. Às vezes perdemos público, outras, ganhamos. É muito volátil. Ao mesmo tempo, acredito que estamos aqui para isso, para criar e para sair dos limites. Se o público consegue ou não apanhar, é uma questão de sensibilidade.

Não sou fã de David Bowie, mas conheço fãs que me dizem que cada disco dele é completamente diferente. As pessoas têm de estar prontas para a mudança e deixar os artistas experimentarem. Estou a dizer isto porque já me criticaram por não saber quem sou. No entanto, sempre houve um fio condutor nas minhas músicas, que é a questão da moral, a poesia, a profundidade que as minhas letras sempre tiveram. No álbum pastoral simplifiquei nas letras, mantendo a profundidade, e acrescentei mais elementos musicais.

 

Como se passa de cantar em inglês para a aposta no português?

Tem a ver com a maturidade. Cantar na nossa própria língua é como se te despisses. Ao cantar em inglês estamos defendidos por uma letra que naturalmente soa bem. No início cantava em inglês porque não queria que os meus pais percebessem as minhas letras. Como os anos passaram, não me importa se sabem ou não. Quando era mais novinha queria esconder-me na minha bolha e era mais fácil falar dos meus sentimentos em inglês.

 

Integrada no solar punk de “Pastoral” existe a ideia de um futuro onde a tecnologia e a natureza possam coabitar. Acreditas nisso?

Sou mãe e, por isso, tenho de ser positiva. Olho para este mundo e para um ser tão pequeno e, se não for positiva, começo a achar que fiz um erro ao pô-lo neste mundo. Isto está caótico, mas acredito na humanidade. Acredito que temos poder e nesta geração mais nova. Os adolescentes fazem aquilo que os pais nunca fizeram. É sempre assim. Se os pais são muito conservadores, os filhos vão ser completamente liberais. Acredito que de uma geração colada ao telemóvel, passaremos para outra desligada da tecnologia, mais interessada pela natureza. A arte de plantar está a desaparecer, por isso, terá de surgir uma geração para ser o punk. Solar punk vem dessa ideologia de rebeldia em prol do planeta. Cyber punk é distópico, com as máquinas a tomarem conta de nós; solar punk fala de máquinas evoluídas que nos vão ajudar a tomar conta do planeta e a gerir os recursos naturais. Esta linha de pensamento também imagina uma sociedade onde vivemos em locais circulares e que estão de acordo com os recursos da terra. É preciso ter mais consciência do que existe no nosso planeta para depois nos adequarmos a ele e não ao contrário; de usurparmos a terra a nosso favor. Tem de ser uma simbiose.

 

É difícil construir um percurso musical fora dos circuitos normais?

É. Não há outra resposta. O normal o que é? É fazer música mais comercial, pensada para competição, com masters muito competitivos? É uma boa pergunta. O que é o normal? Aqui em casa somos todos músicos independentes. Estamos com editoras, mas, ao mesmo tempo, todos sabemos gravar. Somos independentes da indústria das músicas mais populares, mais pop.

 

Os teus álbuns foram sempre produzidos integralmente por ti?

Sim, menos o “Pastoral”, que foi trabalhado pelo Hugo Correia, e o “Origins”, que foi coproduzido pelo João André, que agora é produtor de grandes cantoras pop, como, por exemplo, a Bárbaro Tinoco. Curiosamente, estamos ambos a fazer aquilo que queremos. Quando penso em “mais normal”, penso no trabalho dele. Existem estratégias e técnicas para singrares na música. Assinares com uma grande editora é meio caminho andado, mas depois perdes. Cada concerto que vás, apenas 10% do cachet são para ti. Tive propostas de grandes editoras à minha frente, mas ia cantar para quem? Além disso, teria a editora a opinar sobre as minhas músicas. Prefiro não encher arenas, para já, do que sucumbir às pressões do capitalismo. É tudo muito à volta do dinheiro e do lucro e eu não quero ir por aí. Não estou a criticar a música. A música, cada um é que sabe e vale o que vale, mas essa estratégia mais pesada afasto-a de mim.

 

Assumiste as dificuldades de um caminho alternativo…

Não são dificuldades. Há caminhos que não foram percorridos, principalmente por mulheres. Em Portugal, contam-se pelos dedos das mãos as mulheres que conseguiram singrar de forma independente. Agora já há mais, mas aos meus quinze anos não conhecia ninguém que fizesse o dedo do meio às editoras e que conseguisse vencer. Este país é muito católico! É muito difícil para as mulheres saírem do casulo em que as põem. Temos de ser umas betinhas, estarmos caladinhas, cantar um fadinho, as nossas cançõezinhas de amor e não falar mais nada. A Garota Não surpreendeu-me. Apesar de não achar musicalmente muito interessante, adoro as letras dela. Fala de coisas muito importantes para a sociedade e são cantadas por uma mulher. Isso é bom!

 

Como se enquadra o “Pastoral” no universo global da emmy Curl?

“Pastoral” nasce quando eu estava gravida do meu filho. Lembro-me perfeitamente do dia, porque foi no dia anterior a ele nascer. É uma história um pouco complexa. Estava grávida de seis meses e vim sozinha da Dinamarca para fazer a tour do álbum “Porto”. Dei um concerto em Lisboa e, no dia seguinte, a minha agente ligou-me a dizer-me que íamos ter de cancelar a tour inteira por causa do confinamento. Pensei: o quê? A tour era o meu único meio de subsistência. Fui para casa dos meus pais em Vila Real e montei lá o estúdio. Se era para ficar em casa, queria começar de imediato a debitar os meus pecados e os desfortúnios. De repente, olhei para as montanhas e pensei: vou começar um álbum sobre isto. Sobre esta casa que sou eu, que é minha, Trás-os-Montes. Nasce então Mirandum. No dia seguinte nasceu o meu filho. Acho que foi muita pressão. Estávamos todos muito nervosos. Aconteceu ali e, a partir daí, escrevi muito sobre o nascimento dele. Vem Até Mim é uma música sobre a empatia. O meu filho nasceu prematuro e foi enviado para o hospital de Guimarães, apesar de ter nascido em Vila Real, onde eu fiquei. Foi uma cena de terror. Durante um mês e meio ficamos condicionados e só uma pessoa podia visitá-lo. O Andreas, o pai, não pôde vê-lo durante um mês. Prometiam-me sempre que ia pegar nele e nunca me deixavam. Vem Até Mim nasceu da falta de empatia que eu vivi e fala sobre como parece estável a utopia da empatia. Chegada é a chegada ao estar bem comigo mesma. “Cheguei ao fim da rua. Não te lá vi. Fui p'ra longe a procurar-te. Quando estavas só aqui. ” Muitas vezes vamos procurar as coisas no longe, fora de nós, quando o que procuramos está dentro de nós. Durante a fase em que o meu filho esteve em hospitais, tive de me focar muito no meu bem-estar mental.

A casa também está associada à tradição. Senhora do Almortão ou Macelada têm a ver com a portugalidade que investiguei. Este álbum foi fruto de uma pesquisa muito profunda em termos de sonoridades.

 

Falas do Giacometti?

Também. Para mim, em termos vocais, a minha inspiração foi a Catarina Chitas. Quando pensamos em música portuguesa pensamos em fado, mas existe algo mais antigo que vem dos celtas. Na verdade, o povo português era um povo celta. Existia, da Galiza até ao Douro, o povo lusitano e os celtiberos. A história da Península Ibérica é muito rica. Só mais tarde chegaram os árabes que começaram a invasão a partir do sul. Daí veio a musicalidade do fado, do arabesco. Este álbum é uma ode à nossa tradição mais pagã. Pagã porque adoravam os processos da alquimia, dos astros. Tudo estava em combinação connosco. Os antigos sabiam quando plantar porque olhavam para as estrelas. Hoje em dia perdeu-se isso tudo e está tudo agarrado às tecnologias, mas, se isto um dia falhar, estamos perdidos.

 

Vais continuar neste estilo ou, como nunca estás no mesmo lugar, vais mudar?

Não tenho regras, mas quando digo que não gosto de estar no mesmo sítio já estou a criar uma regra. Vai ser o que me apetecer. Com “Pastoral” abri uma caixa de pandora.  A quantidade de coisas ainda por descobrir, é enorme. Temos, por exemplo, os Sopa de Pedra e os Retimbrar, que estão a fazer esse registo cancioneiro. O Zeca Afonso fez isso. Estou a ler um livro chamado “A Revolução Antes da Revolução”. Os cantautores dessa época já estavam a fazer uma coletânea de canções inspiradas na música celta. Também eles estavam fartos do fado. Em Portugal assumimos que só temos um estilo musical, mas não temos. Temos vários. O Zeca Afonso é uma das minhas grandes influências. Também o Vitorino ou o Zé Mário Branco. Depois, nos anos 80, parece que o pessoal se esqueceu disso. Porquê? Porque a ditadura acabou e os miúdos daquela fase tiveram acesso a música estrangeira e deixaram de prestar atenção à música portuguesa. Agora estamos nós fartos. Só música inglesa! A nossa geração está a pegar no legado dos nossos avós e a continuar. É muito giro! É uma revolta cultural e o estarmos juntos em descoberta. Gostava de fazer mais um álbum e depois… quem sabe. Ainda não sei o que vai acontecer. Um dia de cada vez.

 

Como foi ser referenciada pelo site americano Tiny Mixtapes relacionando-a com as “Cantigas de Maio” de Zeca Afonso?

Não estou a par disso. A sério? Uau! Tenho de descobrir isso! Bem, sinto-me muito bem [gargalhadas]. Não estava nada à espera. É curioso, porque sempre achei que lançando este álbum em português não teria nenhuma referencia no estrangeiro. Reconhecerem o nosso trabalho lá fora, principalmente em português, é espetacular. A nossa língua é tão bonita! Temos uma baixa autoestima. Estamos agora a começar a melhorá-la. Celta é warrior (guerreiro), o oposto do fado. Por isso quis trazer esse lado nosso. É muito nortenho.

 

Que diferenças trouxe a colaboração com o Hugo Correia?

Quando o conheci, há uns 10 anos atrás, convidou-me para um tema dos Fadomorse. Na altura, lembro-me de lhe dizer que quando fizesse um álbum todo em português o iria convidar para produzir comigo. Aqui estamos nós! Foi das pessoas com quem me senti mais conectada em termos musicais. Aquilo de que estou a falar, ele já explorou ao máximo nos Fadomorse. Para mim, é o Frank Zappa português. É uma pessoa muito talentosa e, para além disso - porque o talento não é tudo -, é super trabalhador. Quando lhe liguei a dizer que ia fazer a Senhora do Almortão, disse-me: “Outra vez?!”. Respondi que íamos faze ruma versão diferente. Quando me mandou o primeiro sketch pensei: é mesmo isto! Eu enviava-lhe a minha versão meia tecno, eletrónica, e ele acrescentava-lhe os arranjos de orquestração clássica. Resultou num mix engraçado de modernidade e tradição.

 

Como surge a ligação à editora Cuca Monga?

Foi daquelas magias que acontecem na minha vida. Andava a pensar que este álbum precisava de uma ajuda, já que eu nunca tinha tido uma editora. Já não era só eu; tinha um filho, uma família, um coletivo de artistas que dependiam de mim. Se falhasse, já não era só eu a falhar. Nesse dia mandei a intenção ao universo de que precisava de uma editora. No dia seguinte ligou-me uma pessoa da Cuca Monga e convidou-me para editar o álbum com eles e eu não soube dizer que não. Aceitei e estou a gostar muito de trabalhar com eles. Aqui não posso deixar de referir a MOSTO, a minha agência, que é muito importante neste ramalhete. A Cuca Monga fez a edição e a assessoria de imprensa, que é muito importante.

 

Como se articula o projeto Miradoura com a emmy Curl?

Miradoura nasce em parceria com o Andreas Sidenius, o meu companheiro. São retratos sociais da nossa vida na Madeira. Começou aí, onde a nossa casa era uma espécie de miradouro de onde se via toda a cidade do Funchal.  Achamos que fazia sentido esse nome. Depois começamos a escrever sobre tudo: sobre a dificuldade de ter uma vida estável na nossa geração. Coisas com as quais qualquer pessoa se identifica.

 

O que vai acontecer com esse projeto?

Vamos lançar um álbum mal tenhamos o estúdio montado. Vamos criar um estúdio de música aqui na garagem e o intuito é que as pessoas possam ficar aqui e usufruírem dos espaços criativos. Queremos fazer uma feira de artesanato todos os meses e jantares de grupo. Se não fizermos estes eventos, onde as pessoas se conhecem e se unem, acabamos por ficar longe uns dos outros.

 

O que pode o público de Santa Maria da Feira esperar do concerto da emmy Curl?

Pode esperar, além de “Pastoral”, músicas que estou a escrever e que ainda não foram lançadas. Algumas com poemas do meu bisavô, que também era poeta, e que eu resgatei. Sonetos muito bonitos que ficaram perdidos e que, ainda sobre o tema da tradição aliada à tecnologia, fazem todo o sentido. Além disso, vou levar as projeções das minhas artes visuais que também são feitas por mim. Não sou só música, sou a mulher dos sete ofícios. Gosto de costurar, de fazer bijuteria. Nos concertos levo sempre a minha bijuteria. Acho que me reparto por vários ofícios. Lá está, como me canso de fazer sempre a mesma coisa, quando não consigo escrever música, vou pintar. Passado um mês volto para a música e parece que houve um salto quântico na minha inspiração e na minha disponibilidade para compor. A arte é toda uma coisa. As pessoas é que a põem em caixas. Artes plásticas, visuais, a dança… Por isso é que o cinema é a Sétima Arte. Quando vamos ao cinema, está lá tudo.

 

Entrevista realizada a 6 de dezembro de 2024