Entrevista a Camané & Mário Laginha


Atuaram pela primeira vez juntos há 23 anos, mas foi em 2018 que surgiu a ideia de criarem um projeto a dois. A distância do piano ao fado dos nossos dias estimulou-lhes a criatividade e pisam o palco a dois há cinco anos sem que o entusiasmo esmoreça.

Laginha afirma que Camané é “um milagre ambulante”; o fadista diz que o parceiro entrou no mundo do fado com “muita facilidade”.

Conheça melhor esta dupla de artistas que, de mundos musicais opostos, criaram um projeto único no país do Fado.

 

Quando e como decidiram trabalhar em conjunto?

Mário Laginha: O mais profícuo foi um telefonema venenoso do Camané: “E se preparássemos um reportório para fazer concertos?”. Já nos conhecíamos há muito tempo e já tínhamos feito umas brincadeiras juntos. Houve uma empatia musical e humana, pessoal. Como eu acho que o Camané é uma espécie de milagre ambulante, disse: “Vamos a isso!”. O convite foi feito em 2018, mas o disco surge em 2019, no ano anterior à pandemia.

Camané: Já tínhamos feito muitas coisas juntos.  O Mário já tinha musicado para mim o tema “Ai Margarida”, do poema de Fernando Pessoa. A primeira vez que tocamos juntos foi no lançamento de um carro, na Culturgest, em 2001. Depois, em 2018, liguei ao Mário e falei-lhe na ideia de fazermos concertos juntos.

 

Porquê o Mário Laginha? O vosso background é completamente distinto…

Camané: Já tínhamos tido a experiência de tocar juntos em projetos pontuais como, por exemplo, num concerto no CCB para o qual pedi um arranjo ao Mário.

Mário Laginha: Tínhamos feito, uma vez, uma coisa numa casa de fado, onde eu acompanhei uns fados.

Camané: Sim, e eu lembrei-me que se dizia que o fado começou por ser acompanhado ao piano nos grandes salões. Não existem registos sonoros, mas há coisas escritas. A experiência com o Mário tinha sido fantástica. Ele percebeu perfeitamente a minha ideia. Na altura falei-lhe de fazermos um disco baseado no fado. Ou seja, o Mário ir ao encontro do fado. Encontrar aquele registo, aquele tempo, aquela estética. Foi algo que ele percebeu perfeitamente e isso foi fantástico.

 

Podemos dizer que o piano conseguiu substituir a guitarra portuguesa?

Camané: A ideia nunca foi substituir a guitarra. Queríamos fazer um disco de fado, mas com o piano.

Mário Laginha: Do meu ponto de vista enquanto pianista, o modo como encarei o desafio foi o de tentar descobrir uma forma de acompanhar bem um cantor de fado, compreendendo a linguagem. Não tentei puxar o fado para o jazz, porque é uma coisa que não me atrai. Aquilo que trago do mundo do jazz, só quero utilizar se achar que vem a propósito. Isso é tentar ter, e não estou a dizer que tenho, inteligência musical. Tentar perceber a música e descobrir qual a melhor forma de interpretar.

Naturalmente que também tem a ver com o gosto pessoal. Ouvi a música e percebi que havia um equilíbrio que eu não queria perturbar ou matar. O que tentei fazer foi descobrir uma maneira de recriar aquele universo ao piano. Não é igual, porque não pode ser igual. Passei uns meses a ouvir trios de guitarra, nomeadamente Carlos Manuel Proença, José Manuel Neto e Paulo Pais. Lembro-me de ouvir e de pensar: eu já percebi isto, e começava a tocar. Quando achava que já estava bem, ouvia e pensava: ainda estou a milhas (risos).

Foi um desafio fascinante. O Camané foi absolutamente fundamental, porque ia-me dando dicas. Isso fez-nos encontrar uma forma de juntar, no fado, piano e voz em pleno século XXI, que não foi muito feito, e isso dá-nos um orgulho e uma alegria enormes.

Camané: Existe um registo muito tradicional. A forma como o Mário entra nessas músicas é genuíno. O “Alfacinha”, do Jaime Santos, por exemplo, é o “Alfacinha” que eu conheço desde os oito anos. É aquele registo, aquela estética musical. Foi fantástico! Achei que o Mário ia perceber isso e percebeu. Uma das coisas que eu acho admiráveis, é quando alguém entende o estilo musical. Já fizemos brincadeiras de chegarmos a Buenos Aires e tocarmos dois tangos.

 

Qual foi a reação do público?

Mário Laginha: Correu bem. Quando tocamos “El Día Que Me Quieras” em Buenos Aires, ficou tudo maluco (gargalhadas)!

Camané: Entrei no registo; aprendi o castelhano com o sotaque argentino e, quando pegamos nas músicas argentinas tradicionais, cantamo-las daquela forma. Claro que foi à nossa maneira, mas estava muito próximo. É giro perceber as diferenças musicais e o Mário percebeu isso perfeitamente.

 

Não tiverem receio que o vosso público se confundisse? Isto é, o fado e o jazz são muito diferentes.

Mário Laginha: As fronteiras têm-se esbatido e as pessoas já não ligam tanto à ideia de que isto pode ou não ser feito. Esse é um aspeto positivo. Mesmo quando corre mal, a mim agradam-me as ideias de tentativa, de experiência. O que nos diz se correu bem ou mal é a reação do público. Acho que as tentativas e as experiências devem ser feitas. Creio que a nossa correu bem.

Camané: Sempre me disseram, desde miúdo, que não é fadista quem quer, é fadista quem nasceu fadista. Cresci no meio do fado. Quando era miúdo e cantava nos festivais da canção escolares, havia um preconceito enorme em relação a este género musical. Os meus amigos diziam-me: “Parece que estás a cantar fado”! Quando cantei pela primeira vez ao vivo, foi fado. Sempre que cantava fado com outro instrumento, era fado, porque não há maneira de fugir. Muito do que o Mário conheceu do fado foi comigo e, naturalmente, isso influenciou este trabalho. Ele encontrou-se com o fado quando fez o disco comigo. Na minha forma, no meu tempo, na minha respiração. Ele próprio criou uma respiração, eu vi-o. Este disco é um disco de fado e o Mário chegou lá com muita facilidade. A forma como eu interpreto, como transposto para a minha área …  o Mário entrou nisso de uma forma natural.

Mário Laginha: Quando eu era jovem adulto estava apaixonado pelo jazz e não ligava nada ao fado. Na realidade não gostava. O Camané disse uma coisa que é absolutamente verdade: a primeira vez que eu ouvi fado e me dei conta de que estava a gostar imenso, foi com o Camané. Não nos conhecíamos e pensei: Estou a gostar imenso disto. Quem é que está a cantar? Na realidade, por muito incrível que pareça, descobri a Amália depois. Apesar de não gostar muito de tornar tudo muito explicável, há algumas características que o Camané tem que fazem dele um dos cantores mais honestos que eu já ouvi. Aquilo que é mais importante para ele é servir a canção. É uma coisa de uma nobreza incrível. Para ele não é importante que as pessoas achem que canta bem. O importante é servir a canção e é isso que fazem os grandes cantores.  

Camané: Os grandes fadistas do passado tinham essa particularidade. O Carlos Ramos, João Braga, Carlos do Carmo e o João Ferreira Rosas tinham essa singularidade. Poetas, fadistas, Amália, serviam as canções. Tinham essa forma de cantar e as canções ficaram na história por causa disso.

Lembro-me perfeitamente do registo emocional das pessoas que trabalharam comigo e que estavam sempre atentas ao que eu fazia. O Zé Mário [Branco], a Manuela de Freitas. A ideia não é exibir-se e o Mário é isso mesmo. Vai por dentro das coisas, respeitando a música. Há uma coisa fantástica que ele faz no fado “Alfacinha” (trauteia)… aquilo é o “Alfacinha”. Se for feito com uma guitarra é o “Alfacinha”. Por exemplo, o “Ai Mouraria” tem mais de 200 anos, mas ele pega nesse fado e continua a ser o “Ai Mouraria”. O instrumento é diferente, de resto está lá tudo.

Mário Laginha: Quando começamos a criar o repertório, uma das maiores dificuldades que tive foi, precisamente, com esse fado, porque só tem dois tons e eu achei muita graça. Quando era um jovem de 19 anos a querer explorar o jazz, queria conhecer a complexidade, as coisas difíceis. Tudo o que era demasiado simples irritava-me. Agora, 40 anos depois, é engraçado pensar que de todos os temas que ensaiamos, escolhemos e tocamos, nenhum me deu tanto trabalho – tive de estudar horas – como o “Ai Mouraria”, com apenas dois acordes. Como fazer para torná-lo interessante? Si maior e Mi maior…. Tornei-me um defensor de que em todos os tipos de música, complexa e não complexa, há coisas maravilhosas. Coisas simples são difíceis e criam dificuldades. Ou seja, não há refúgio. Se tivermos muita coisa, é mais fácil. Foi uma lição.

 

Porquê o título “Aqui Está-se Sossegado”?

Camané: Antes de pensar nisto, fiz um programa de televisão sobre as minhas raízes.  Soube que as minhas origens são do Norte da Europa e que a minha família veio toda de Aveiro, da Murtosa. O meu bisavô trabalhava em construção de navios, era fadista e tinha a influência do fado de Coimbra. Já tinha lido e visto fotografias dele, conhecia a sua história, mas nunca tinha ouvido nada.  Felizmente, um colecionador, o Zé Mouças de Rio Tinto, tinha um disco do meu avô de 1918. Ouvi e gostei imenso. A letra do fado era um pouco datada, tinha a ver com uma época, então adaptei a música do meu bisavô ao poema do Fernando Pessoa “Aqui está-se Sossegado”. Já tinha gravado essa música, mas decidimos gravá-la outra vez com piano. Gostamos imenso e decidimos dar esse título ao disco. Primeiro começamos com os espetáculos. Só depois decidimos fazer o disco, ao fim de 10 ou 12 concertos. Fomos para estúdio e gravamos em takes porque já sabíamos tudo de cor. O disco foi feito com uma grande espontaneidade. Foi um sossego. Para além disso, estamos só os dois a fazer fado. Claro que isso depois refletiu-se em tudo, mesmo nos fados tradicionais. Estávamos lá os dois e isso foi fantástico.

 

Têm noção de quantos concertos já fizeram juntos?

Camané: Devemos ter feito uns 100. Ao mesmo tempo que cada um faz os seus concertos, há sempre espaço para nos encontrarmos. Continuamos a fazer um ou dois concertos por mês. Se calhar, isto vai prolongar-se para o resto da vida.

Mário Laginha: Vais ter de levar comigo (gargalhadas).

 

Falamos de uma parceria iniciada em 2019. A que atribuem esta longevidade?

Camané: Isso não sei (sorrisos)! Deve ser o Becas [agente].

Mário Laginha: É esta cara laroca (referindo-se a Camané)!

Camané: A verdade é que este nosso projeto não põe em causa os nossos outros trabalhos. Já nos conhecemos um ao outro. Chegamos a estrear músicas em palco, “A Noite Que Fica”, com um poema lindíssimo do Fernando Pessoa. Vamos gravá-lo, claro!

Mário Laginha: Tem alguma graça chegar a um ensaio de som, relembrar e está feito. Mas, pelo menos para mim, só é possível agora. No início ficava um bocado assustado.

 

Houve uma evolução na vossa relação, ou a tal empatia de que falavam há pouco foi de tal forma imediata que foi fácil começar logo?

Mário Laginha: Na minha opinião, a empatia foi imediata e isso nota-se. Não há mais nem menos. Do ponto de vista musical, evoluiu. Começamos a conhecer-nos melhor e tudo começou a ser mais orgânico, mais fluído e mais fácil.

Camané: Nos últimos tempos, que até temos ensaiado muito menos, têm acontecido coisas fantásticas. Respostas automáticas do piano e ligações imediatas.  

Mário Laginha: Isso foi muito bom. Fizemos concertos e depois um disco, e isso é muito diferente do habitual. A razão pela qual partimos para o disco foi: olha que isto está a soar bem. E se fizéssemos um disco?

Camané: Isto está cada vez melhor e ainda há coisas que não gravamos. Estamos a curtir.

 

O que pensam desta já não tão recente renovação do fado?

Camané: As pessoas percebem aquilo que é realmente fado. Existem coisas que não o são, mas são opções. Compreendo perfeitamente. O fado tem a ver com a estética musical e com a forma de cantar. Nos anos 90, quando eu gravei o primeiro disco, foi muito difícil. Lembro-me que gravei o disco, que até correu bem, também na crítica, mas fiz um concerto em Portugal, o resto foi tudo lá fora.

 

O fado era visto como um género musical para pessoas mais velhas…

Camané: Isso aconteceu muito, por isso houve um esforço muito grande para chegar a todo o público. Havia necessidade de renovar. Umas pessoas renovaram da forma certa, outras da forma errada, como sempre acontece. Aquilo que é fado fica.

 

Considera esta renovação positiva, ainda que haja alguns desvios?

Mário Laginha: É sempre positivo. Quando há renovação, gente nova que traz novidades, é positivo. No jazz também aconteceu. Nunca houve tanta gente a aparecer e a tocar. De entre essa gente há projetos que eu acho bons e outros menos bons, mas isso faz a música crescer e é bom.

Camané: O fado, como as outras músicas, renovam-se de dentro para fora. A maior parte das pessoas que o têm estado a renovar são pessoas que vieram das casas de fado. Claro que muitas delas são muito mais novas do que eu, mas fazem aquilo que ali aprenderam e a forma como cantam também tem a ver com o fado.

 

O que pode o público de Santa Maria da Feira esperar deste concerto?

Camané: É um espetáculo de fado. Vamos cantar fado tradicional, mas também vamos cantar algumas coisas novas. Faremos um apanhado do meu repertório, mas também do repertório que fiz com o Mário Laginha. Vamos apresentar também alguns temas novos.

Mário Laginha: Algum repertório do nosso disco, mas há coisas novas, sinal de que o duo está vivo. Queremos divertir-nos a fazer música juntos. É uma coisa que fazemos com paixão e com entrega. Uma das graças que tem esse concerto é que vai ser o primeiro concerto do ano para ambos. Eu, que sou um cético por natureza, acho piada às coisas que têm um simbolismo. Gosto que o primeiro concerto do ano seja um concerto que me deixe feliz, que me apeteça fazer, e este é um concerto que me apetece muito fazer.

 

Entrevista realizada a 6 de novembro de 2024