Autêntica e Sem Filtros: a maturidade emocional de Carolina Deslandes


Com uma carreira marcada pela autenticidade e pela força da palavra, Carolina Deslandes regressa aos palcos num formato mais intimista e maduro. Em entrevista, a cantora fala sobre o impacto da sua vulnerabilidade nas canções, a forma como a maternidade molda a sua vida artística, e a importância de reescrever narrativas femininas — tudo isto com a frontalidade e emoção que lhe são tão características.

 

CM Feira: Consideras-te uma cantora autobiográfica?

Carolina Deslandes: Sim, muito autobiográfica. Às vezes, mais do que gostava.

CM Feira: Porquê?

Carolina Deslandes: Eu achava que havia o perigo, quando as canções são demasiado pessoais e específicas, de servirem a menos pessoas, ou seja, quanto mais especifica tu és numa história, menos pontos dás para que outras pessoas possam identificar, mas a verdade é que, dentro da especificidade, daquilo em que nós achamos que somos únicos, há milhares de pessoas a viver exatamente o mesmo. Isso acabou por ensinar-me. Às vezes sinto que era mais fácil se não me expusesse tanto, mas não sei fazer de outra maneira, portanto, está tudo bem.

CM Feira: Tens noção de que tens uma legião de fãs entre as crianças e os adolescentes?

Carolina Deslandes: Mais entre crianças e pessoas mais velhas, que entre os adolescentes, de acordo com aquilo que vejo estatisticamente. Acho que consegui fazer uma coisa com a minha música, que foi aquilo que sempre quis na verdade, que é fazer canções transversais a toda a gente. Eu gosto que as pessoas possam trazer a avó, a filha e ainda a outra filha e todas ouvem a música. Não quer dizer que ouçam todas as canções, mas há pelo menos duas ou três que a família inteira ouve. Isso deixa-me muito feliz, porque eu acho que a música é isso mesmo: quanto mais pessoas se quiserem juntar à festa, melhor.

CM Feira: Porquê este novo formato, voz e guitarra?

Carolina Deslandes: O Feodor [guitarrista] está na minha banda há 10 anos. Este ano é a nossa décima tour. Começamos a fazer tournées em 2015. Sempre fomos fazendo uns auditórios, porque nem todos os sítios têm capacidade de receber uma banda e porque eu adoro fazer concertos neste formato. Agora decidimos profissionalizar, pensar mais nisto e dedicarmo-nos mais a este concerto. Estou com outra idade. Gosto de falar sobre as canções, gosto de ter tempo, de não estar sempre a apelar à energia e ao salto, mas apelar também ao diálogo e à introspeção e, cada vez mais, me dá muito gozo fazer este tipo de espetáculo. Apesar de já o ter feito, acho que agora o faço com mais maturidade.

CM Feira: O facto de ser um concerto mais intimista vai permitir uma ligação maior com o público?

Carolina Deslandes: Acho que sim. Acho que cada vez mais as pessoas querem saber o processo por trás das coisas. Nestes concertos, gosto de explicar de onde nascem as canções; quais são as histórias que as inspiram; onde foram feitas as canções; a que horas foram feitas. Dá também para mostrar quem sou eu e o que penso sobre as coisas. Quando te tornas um artista e uma figura pública, as pessoas conhecem aquilo que tu cantas, mas também conhecem aquilo que fabricam sobre ti e o que dá jeito fabricar sobre ti. Como sou interventiva e como vivo indignada com as coisas, foi criada uma personagem à minha volta que, em muitos aspetos, não corresponde à minha personalidade. Acho que isto é um bom exercício de desconstrução. Há pessoas que, se calhar, acham que eu sou de uma determinada maneira, mas quando saem destes espetáculos ficam a conhecer-me.

CM Feira: A falta de autoestima de que já falaste tantas vezes, três globos de ouro e uma legião de fãs não apagam isso?

Carolina Deslandes: Sou insegura desde sempre, mesmo antes de fazer música profissionalmente. Nós somos mulheres, já nascemos com toda a gente a querer fazer-nos inseguras. Temos de ser isto ou mais aquilo. Eu nunca tinha pensado muito sobre o meu aspeto físico até ter ido para a televisão. Não era uma coisa em que pensasse muito. Nunca fui muito ligada às aparências, nem à minha, nem às das pessoas por quem eu me apaixonava. É muito engraçado porque muita gente à minha volta questionava-me muito: “porque é quer gostas daquele rapaz?” Para mim, há um espetro muito grande do que faz uma pessoa, e a aparência não é de todo a primeira, nem a terceira, nem a quarta coisa que eu vá reparar. Quando comecei a perceber que isso era a primeira coisa que as pessoas falavam sobre mim, como se não estivesse a corresponder às suas expetativas, isso magoou-me. Eu era nova, muito miúda, e as pessoas falavam de mim com muito ódio, com muita propriedade, e eu não sabia, sequer, que isso se podia fazer. Depois, também tem a ver com o facto de passares por processos de pós-parto, de gravidez, de divórcio, com toda a gente a saber e a sentires-te constantemente vulnerável e perceberes que, quando é publicamente sabido que estás numa fase mais vulnerável, então é aí que as pessoas se sentem ainda mais impelidas a criticar-te, porque, de alguma forma, isso lhes dá uma superioridade perante a tua vida e uma falsa sensação de que estão com mais força do que tu. As pessoas querem muito aproveitar-se e isso transtorna-me um bocadinho a cabeça.

CM Feira: A Saia da Carolina … como foi que decidiste pegar numa música tradicional e passa-la para um grito sobre a liberdade das mulheres?

Carolina Deslandes: Primeiro, é a única canção tradicional que tem o meu nome. Há a outra do “chora, chora, chora Carolina” [trauteando]. A Saia da Carolina é que única que me cantavam quando eu era mais nova. Eu não percebia nada da letra, mas aquilo enervava-me. Primeiro, porque eu nunca gostei de saias, depois, porque o “tem cuidado oh Carolina, tem cuidado oh Carolina”, deixava-me nervosa. Antes de fazer esta recriação d’A Saia da Carolina falei com a minha mãe e disse-lhe: “fogo, uma pessoa que tenha uma filha e que lhe queira contar uma história, tem de escolher muito bem a história que lhe vai contar, porque a miúda vai crescer a achar que está sempre em perigo, que é preciso ver alguém salvá-la”. É sempre: a princesa na torre com o dragão e veio o príncipe; a princesa comeu uma maçã e veio o príncipe; a princesa perdeu o sapato e veio o príncipe; a princesa… hoje em dia, queres contar alguma coisa a alguma miúda que diga assim: era uma vez uma rapariga que foi atrás de não sei o quê e não havia. Eu dizia: “é mesmo difícil!” Como é que vais explicar às raparigas que já não estamos no tempo que se vivia antes, em que a mulher era a cuidadora das crianças e do lar, e que, hoje em dia, nós somos muitas no mercado de trabalho, que somos muitas mais que os homens nas universidades, mas ainda não se reescreveu a história. As histórias continuam a ser as mesmas. Então, tive muita vontade de pegar n’ A Saia da Carolina, que tem o meu nome e, lá está, torna-a muito mais próxima de mim, mais pessoal, e escrever uma canção nova. Foi também uma forma de dizer: não, nos vos vou agradar. Nunca! E não, eu não vou ser a figura feminina bonitinha arrumada que, se calhar, se espera de uma mulher na minha posição. Isso foi muito libertador.

CM Feira: No mundo da arte ainda há diferenças entre o homem a mulher?

Carolina Deslandes: Há diferenças em todos os mundos. Acho que as pessoas não estão preparadas para assumir que há muito trabalho a fazer e, principalmente, não estão preparadas para assumir que isto não é uma luta das mulheres, que isto é uma luta de toda a gente. A justiça e a igualdade não podem ser só uma preocupação do grupo que é prejudicado. Acho que ainda há injustiça em todo o lado, naquilo que se paga, na forma como se passa um pano no comportamento de um homem e se condena todo o comportamento de uma mulher. Nunca vi nenhum artista, nenhuma figura pública masculina, irem-lhe comentar o peso ou a roupa, e connosco é a primeira coisa que fazem. Eu não sou modelo, não sei qual é confusão aí. Eu não tenho como trabalho passar numa passerelle de biquíni. Depois, há outra coisa que também me transcende e que também acontece mais com as mulheres do que com os homens: se nós não gostamos de um artista, porque é que nos damos ao trabalho de ir ofender aquilo de que não gostamos e que não ouvimos? Há tanta coisa para ir ouvir, não é? Eu não pego em livros que não gosto para dizer: eu nunca vou ler este livro. Simplesmente passo na livraria e compro outro e deixo que aquela pessoa tenha direito aos frutos do seu trabalho. Os artistas que eu não oiço e não consumo, quero na mesma que tenham uma vida boa, que ganhem dinheiro a cantar, a escrever, que façam tours, que consigam sustentar a sua família. Não é por eu não ouvir um artista que lhe desejo mal. Acho que está tudo meio trocado das ideias, principalmente nos últimos tempos.

 

CM Feira: Claramente gostas do que estás a fazer. Como é estar em palco?

Carolina Deslandes: É muito divertido, muito bom. Tem sido cada vez estranho para mim vir da minha vida familiar para a minha vida profissional. Estou com os meus filhos em férias de Páscoa. Hoje tive um almoço com muitos amigos deles lá em casa. Passei a semana toda a fazer programas. Sinto-me, quase, como se fosse uma agente da CIA: durante o dia sou a mãe e vou ao trampolim, vou ao cinema e já sei jogar Minecraft, vou ao supermercado 30 vezes por semana e faço sopa e, quando eu venho para aqui, sinto que estou a mentir a toda a gente. Dá-me vontade de dizer: malta, eu não sou uma cantora pop, eu sou uma mãe periférica exausta! Ainda hoje estava a dizer isso. Almocei com uma amiga de infância que me perguntava: “como é que vais deste registo para dizer mãos cá em cima e façam barulho?”  E eu disse: “Eu não sei”. Cada vez mais me sinto uma pessoa com uma vida dupla, mas é muito bom. Somos todos tão plurais, somos todos tanta coisa! Para mim, é tão importante estar em casa com o cabelo num totó e a ver um filme com os meus filhos ou a fazer um bolo com eles, como é importante estar aqui a falar de justiça, a falar de amor, a falar de saudade e maquilhar-me e sair daqui e pensar: ok, estas pessoas que pagaram bilhete para me ouvir vão sair daqui e sentir que eu lhes dei um bom espetáculo. Dá para ser as duas e acho que isso é fixe.

 

CM Feira: Qual a importância para ti da palavra? Porque, para além de compores a música, também escreves.

Carolina Deslandes: Para mim, toda. Reconheço que não é preciso ser assim para toda a gente. Há pessoas que ligam mais à melodia. Há pessoas que, mais do que a melodia, ligam à produção. Para mim, a palavra sempre à frente. Acho que tem a ver com aquilo que consomes. Eu sou viciada em pessoas que escrevem bem. Mesmo muito viciada em pessoas que escrevem bem. Lembro-me de ouvir as músicas do Rui, de ler os poemas do Tê …

CM Feira: O Rui Veloso é a tua maior referência?

Carolina Deslandes: Sim…há qualquer coisa muito divina quando uma melodia é tão boa quanto um poema. Acho que é por isso que as canções conseguem fazer isso e têm esta coisa de vencerem o tempo. Hoje em dia, conseguires ouvir o Juro ou o Socorro do Pedo Abrunhosa, Essa Miúda do Jorge Palma ou um Sol de Inverno…e se fosse lançada ontem seria na mesma um sucesso. Porque isso é escrita a um nível muito alto, interpretação a um nível muito alto e melodia a um nível muito, muito alto e, para mim, essa exigência tem de existir sempre, em todas as frentes. Sou muito fascinada pelo facto de nós, apesar de inventarmos muito poucas palavras novas, usamos as mesmas palavras há muitos anos e ainda não se esgotaram todas as formas de se falar das mesmas coisas. Se não formos preguiçosos e gostarmos de ser criativos, há sempre formas novas de dizer o que queremos. Para mim, a importância da palavra é toda.

CM Feira: O que é que os feirenses podem esperar deste concerto?

Carolina Deslandes: Será como se fosse uma conversa entre amigos. Eu sei que é muito cliché dizer isto, mas é que é mesmo! Isto tem uma informalidade que, para mim, é necessária. Já profissionalizamos mais isto. Agora temos um cenário, temos uma parte eletrónica, o Feador está a fazer a direção musical, mas isto tem que ter um quê de desconchavado. Tu já pagas o parque com a Via Verde e não falas com ninguém, já encomendas a comida com o telefone e o algorítmico já te mostra o vídeo que tu queres ver. Tem de haver espaço para saíres de casa e veres pessoas que são pessoas, e que estão a fazer aquilo que se prepararam para fazer e a improvisar também. Por isso é que eu quero dar um espetáculo que tenha tanto de preparação, como de improviso. Não há dois espetáculos destes iguais. Nunca houve. Acho que isso é que é o mais fixe. Tenho um grupo de miúdas que costuma vir a quase todos os concertos e em todos eles digo coisas diferentes, em sítios diferentes. Há dias que decido falar numa parte, outros decido falar noutra, há dias em que venho mais triste, outros mais feliz… é um concerto onde não tenho de fingir. Nos concertos de exterior, por mais triste que eu esteja, as pessoas estão numa feira, é julho, está calor e eu vou ter de ser a pessoa mais feliz do mundo durante aquela hora e meia. Aqui não. Aqui eu sou sincera com o meu estado de espírito. É um encontro de amigos, uma conversa. É isso!

 

Entrevista realizada a 12 de abril de 2025